caça às bruxas


A posição mais divulgada da mulher na Idade Média diz respeito à perseguição que ficou conhecida como caça às bruxas. Há quem discorde da utilização da palavra, mas o genocídio contra o sexo feminino na Europa e nas Américas foi pouco estudado e denunciado (quando comparado a outros). Teve início na Idade Média e se exacerbou no século XVI, início do Renascimento. Milhares de mulheres foram assassinadas e torturadas (para cada 10 bruxas contava-se 1 bruxo!). Se esse genocídio tivesse sido perpetrado essencialmente sobre o sexo masculino, seria objeto de análises mais profundas?

Problematizações a parte, a Inquisição não perseguiu somente mulheres ou bruxaria. Os hebreus, considerados hereges, também foram atingidos pelos tribunais eclesiásticos. Porém, na perseguição às feiticeiras existe um elemento de luta pela manutenção de uma posição de poder masculino: tida como bruxa, a mulher possuiria conhecimentos que lhe conferiam espaços de atuação além do domínio masculino. O discurso científico, por exemplo, foi impregnado por esta visão.

Ambroise Paré, médico e cientista ilustre do século XVI, via no organismo feminino a prova da inferioridade da mulher. Ele dizia que os órgãos sexuais femininos tornam as mulheres “disformes e vergonhosas quando nuas” e afirmava sobre a menstruação: “Porque as mulheres são de temperatura fria em relação aos homens, sua alimentação não se transforma num sangue bom, tanto que a maior parte se torna indigesta e se transforma em menstruações, das quais a mulher sadia se purga e se limpa”. François Rabelais, outro grande médico, adotou posições parecidas, concluindo que o corpo histérico da mulher só poderia conduzi-la à desordem moral.

O discurso médico andava de mãos dadas com o discurso religioso. A medicina se instaurou como instituição masculina que advogava o monopólio do saber e do poder de cura. Houve perseguição à prática feminina do trato com ervas e ao atendimento aos partos. A mulher, curandeira e parteira, secularmente encarregada da saúde da população, era o principal concorrente a ser eliminado para o estabelecimento da hegemonia na medicina.

Neste período, a maldição e a dualidade bíblicas acompanharam a mulher. A contradição interna no pensamento da igreja medieval oscilava entre as figuras de Maria, exaltada, e Eva, denegrida. Prevalecia, na mentalidade eclesiástica da época, a formação e o triunfo do tabu sexual. Eva é responsável pela queda do homem e é, portanto, a instigadora do mal. Esse estigma se propaga por todo o sexo feminino e se traduz na perseguição ao corpo da mulher, tido como fonte de malefícios.

Francisco de Goya - Vuelo de Brujas


O Tribunal da Inquisição se instaurou no século XIV, quando profundas transformações econômicas e políticas desestruturavam as bases do modo de produção feudal (no qual a mulher participava ativamente). Tais transformações – mercantilismo, formação dos Estados Nacionais, reintrodução do Direito Romano – afastaram a mulher da esfera pública. Ao mesmo tempo, o poder eclesiástico que se afirmou pela Inquisição era essencialmente masculino: progressivamente, a mulher se viu afastada da hierarquia e da atuação nos ritos desta instituição religiosa.

No discurso inquisitorial, a associação estabelecida entre bruxaria e mulher se explicita pela atribuição de conotações nitidamente sexuais aos rituais, chamados de culto ao demônio: neles, as mulheres copulariam com o demônio. É pelo sexo que ela se faz bruxa – sexo considerado, por natureza, impuro e maléfico. As mulheres queimadas não se distinguiam das demais. Era a natureza feminina que ardia nas fogueiras da Idade Média e início do Renascimento.

Se hoje queimamos as bruxas, é por causa de seu sexo feminino”, dizia Jacques Sprenger, inquisidor e teórico da demonologia, que publicou, no final do século XV, um manual de base do caçador de bruxas, o Malleus Maleficarum, no qual se remetia aos textos sagrados para comprovar a inferioridade feminina. Ele afirmava: “A mulher é mais carnal que o homem; vemos isto por suas múltiplas torpezas. Existe um defeito na formação da primeira mulher, pois ela foi feita de uma costela curva, torta, colocada em oposição ao homem. Ela é, assim, um ser vivo imperfeito, sempre enganador.”

O protestantismo não significou uma queda nesta perseguição às mulheres. Ao contrário, tanto Lutero quanto Calvino aderiram à mesma, apoiados na Bíblia. As grandes religiões historicamente não costumam ser muito amigáveis com as mulheres, não é mesmo? Nem com estrangeiros, nem com infiéis... 😉

E cabe lembrar que não apenas as instituições da Inquisição e da medicina condenavam a mulher. Discursos de intelectuais e de humanistas também a estigmatizavam como inferior e impura, contribuindo para a justificação ideológica de sua desvalorização.



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