silêncio em cima do muro

 Uma frase de Dante Alighieri sentenciando que no inferno os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempos de crise se tornou bandeira de quem cobra posicionamento de influenciadores e artistas. Na modalidade de polarização que não é polarização, artistas e influenciadores que se posicionam denunciam a neutralidade de artistas e influenciadores que não se posicionam. 


Aqueles que se dizem exaustos com a cobrança sequer percebem que não se posicionar já é, em si, um posicionamento. “Tome partido. Neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. Silêncio encoraja o torturador, nunca o torturado”, dizia Elie Wiesel, escritor judeu, sobrevivente dos campos de concentração nazistas, que recebeu o Nobel da Paz em 1986 pelo conjunto de sua obra de 57 livros, dedicada a resgatar a memória do Holocausto e a defender outros grupos vítimas das perseguições.


Só foi possível enviar tanta gente aos campos de concentração porque a população foi isenta, omissa. Foram cúmplices de um regime genocida por se manterem em silêncio, por não se posicionarem. O posicionamento em tempos de crise é desejável e é, também, necessário. O silêncio é compactuar com ódio e ignorância. Quem fica neutro em situações de injustiça escolhe, sem perceber, ficar do lado do opressor.


Todo silêncio funciona a favor de algo que precisa garantir sua própria legitimidade junto aos interlocutores. Em meio a disputas inflamadas de narrativas, ser isento é ser tão ideológico quanto qualquer outro e parece aquele discurso judiciário cínico, em defesa de punições judiciais isonômicas que jamais acontecem e nas quais ninguém acredita realmente.

A isenção é o abrigo dos omissos e quem clama pelo direito de não se posicionar está tomando uma posição muito clara. A neutralidade também é uma posição política, principalmente quando se tem um governo agindo livremente contra a população e atuando pela demolição de instituições democráticas. Pode-se usar o direito de não se posicionar em situações políticas normais, nas quais a falta de posicionamento não vá contribuir para um projeto de destruição que precisa ser interrompido.

Não se posicionar para evitar conflitos e energia pesada em tempos de crise é canalhice, covardia. Respeito e diálogo são fundamentais para a democracia - e que bom seria se todos pudessem desfrutar de uma posição privilegiada, para escolher apenas assuntos leves ou que não trouxessem desconforto. São tempos difíceis que exigem, sim, um comportamento mais ativo, além da reflexão que tire da zona de conforto (ou é apenas mera tentativa de amenizar a consciência). Reflexão é sobre mexer com as estruturas e rever conceitos - nunca será sobre ser inerte.

foto por Humann PhotoArt

Ser passivo, inerte, é deixar o mal acontecer. Soando clichê ao parafrasear Albert Einstein, “O mundo é um lugar perigoso de se viver, não por causa daqueles que fazem o mal, mas sim por causa daqueles que observam e deixam o mal acontecer.” O silêncio diante do absurdo acaba sendo cumplicidade. É ingênuo exigir posicionamentos públicos, tentando impor constrangimento e pressão moral, aos que permanecem em silêncio. Não existe uma via única para ser um bom cidadão. Mas há unanimidades morais (deveriam haver) que demandam posicionamentos de quem tem voz.

A morte de tantos brasileiros no último ano. O aumento da violência contra mulheres, LGBTs, indígenas, jornalistas. A aceleração do desmatamento. O desmonte de instituições de pesquisa e do SUS. Quem não se indigna com absurdos não percebeu o que está acontecendo. Quem tem voz e não a levanta contra os absurdos é cúmplice, mesmo sem querer. Dar sua opinião publicamente tem um custo que nem todo mundo está disposto a bancar, mas é desejável que artistas e influenciadores se posicionem.

É desejável que artistas e influenciadores usem o seu capital social de forma inteligente e transformadora, iniciem conversas importantes, se coloquem como ser humano e como cidadãos. Não é obrigação de nenhum artista ou influenciador ter uma posição política pública. Mas é bem-vindo aquele que, quando resolve se pronunciar, entenda minimamente sobre o que escolheu colocar em pauta, em vez de sair falando asneiras sobre delírios comunistas, extrema imprensa, vírus chinês.

Quem faz entretenimento não tem responsabilidade de educar as pessoas, mas deveria assumir a responsabilidade de não desinformá-las. Especialmente online, ao falar com uma audiência ampla e de todas as idades, deveriam tentar dar informações verdadeiras e incentivar seus fãs e seguidores a procurar e pesquisar sobre tudo o que querem ter certeza.

Quem é seguido por milhares ou milhões de pessoas deveria ser mais responsável. As pessoas podem ser, e frequentemente são, desinformadas por quem conta mentiras ou diz coisas que tirou do cu sem pesquisar antes sobre o que está falando. O paradoxo é que é desejável que usem suas vozes e se posicionem contra absurdos, mas é preferível que não o façam se não estiverem dispostos a pesquisar minimamente sobre o que estão falando. 

Assista:

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für Oma - ebook que escrevi no final de 2020, no qual traço paralelos entre o confinamento da minha avó no século 20 e meu confinamento em 2020. Ela na Alemanha nazista, eu na capital de um Brasil neopentecostal sem rumo. É sobre minha família, mas também é uma crítica social. (disponível para download em português e em inglês)

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