é proibido proibir
*** texto publicado originalmente AQUI ***
Nenhuma censura deveria ser tolerada. Jamais.
Se temos alguma estima genuína pela menina democracia, a liberdade de expressão
deveria ser cláusula pétrea. Precisamos ter a dimensão do que significa proibir
mostras de qualquer tipo de arte (cinema, literatura, plásticas, teatro, dança,
fotografia) por motivos de… qualquer motivo. Precisamos ter noção da gravidade
disso quando praticado pelo Estado.
2018. E a sensação é que voltamos no tempo. O
bug do milênio nos jogou alguns séculos para trás? Estamos em 1918? Ou seria
1818? 1718 faria sentido, pois pré revoluções burguesas e, portanto, pré
separação de poderes, fundamentos da democracia contemporânea, etc coisa e tal.
Ao longo da história, períodos de decadência econômica e social muitas vezes
acompanham uma forte onda de conservadorismo, com grupos divergentes lutando
para impor suas próprias agendas morais sobre os outros.
Não me surpreendo com exposições encerradas
precocemente ou juizes proibindo peças. Quem se surpreende? Me surpreenderia
caso se mobilizassem para derrubar sites que promovem pornografia infantil, pedofilia.
Se incomodasse tanto existiria aos montes? Hipocrisia, apenas. Caso se
importassem, combateriam pornografia pedófila (ou com inspiração pedófila) ao invés de consumi-la. Caso se importassem,
menores de 14 anos não seriam em torno de 70% das vítimas de estupro, além de
grande parte das vítimas de tráfico humano para prostituição.
Parabéns aos hipócritas que contribuem para o
index de obras proibidas. Que esperar de um país no qual o judiciário, em sua
mais alta corte, discute ensino religioso nas escolas públicas… e, em suas
baixas cortes, censura obras de arte? Judiciário em desarmonia com o princípio
constitucional da liberdade de expressão? Tentarão proibir músicas, programas
de tv, jornais, livros?… Já fazem isso?! Denunciam imagens em redes sociais o
tempo inteiro e querem criminalizar estilos musicais. Mamilos ofendem mais do
que cadáveres de crianças mortas na praia.
Não tenho forças ou disposição para defender
performance de gente sem roupa, uma novidade tão velha que essa indignação está
no mínimo uns 50 ou 70 anos atrasada. Nudez ainda choca? Façam-me o favor. Não
é pela má arte, nem pela pedofilia. Essas polêmicas fabricadas provavelmente
funcionam como balões de ensaio para o ano eleitoral. Medem a temperatura de mobilização
das redes. É sobre a capacidade de mobilização, de domínio das redes sociais e
de controle da narrativa. É sobre um tipo de conhecimento e compreensão de como
as pessoas se organizam hoje.
As notícias falsas, notícias manipuladoras e
campanhas focadas estritamente em temas do momento confundem o processo
democrático. A verdadeira democracia requer educação, acesso a múltiplas e
confiáveis fontes de informação e de opinião, debate aberto sem intimidação.
Isso significa combinar o domínio da maioria, o respeito pelas opiniões
minoritárias e a dignidade humana de todos. Nas sociedades democráticas, a
liberdade de expressão não é apenas um valor positivo, mas essencial à
existência dessa forma de governo. E quando a liberdade de expressão está em
perigo, se colocam em perigo todas as demais liberdades.
Permitir que a liberdade de expressão seja
regulada não funciona. Essa regulação será feita com uma régua que atenderá
conveniências do momento ou interesses de algum grupo. Hoje você pode até
concordar com o grupo no poder. Amanhã, outro grupo te perseguirá porque você
pensa diferente.
As soluções reais — dentre as quais uma
educação de qualidade que inclua arte e filosofia, além do aprendizado por meio
da leitura crítica e do contexto histórico — levariam uma geração para
acontecer. E não há nenhuma vontade política nesse sentido. Restamos ridículos,
discutindo algo que existe desde os primórdios (arte e nudez) enquanto o fosso
se aprofunda e os falsos moralistas conquistam corações e mentes. Velhos
clichês são requentados e revitalizados — o artista
amoral, a esquerda perversa sexualmente, a arte que não é arte, o dinheiro
público desperdiçado blábláblá. Qual o estrago que essas intervenções
pontuais fazem no imaginário popular?
***
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