seu corpo, minhas regras
Há poucos dias, uma notícia inusitada ganhou as manchetes e foi amplamente divulgada: planos de saúde estavam sendo infames e pedindo o consentimento do cônjuge para a colocação de DIU em mulheres casadas. O DIU, ou dispositivo intrauterino, é um método contraceptivo que apresenta cerca de 99% de eficácia. É uma pequena estrutura que é colocada no interior da cavidade uterina por meio de um procedimento relativamente simples. Método reversível, desenvolvido nos anos 60.
Reversível ou irreversível, cabe a pergunta: o homem, em uma relação afetivo-sexual, deveria ter poder de vetar que uma mulher faça uso de método contraceptivo, se quem vai arcar com todas as consequências (boas e ruins) de uma gravidez é a mulher? As mulheres são propriedade dos homens que se apresentam como maridos, a tal ponto que a vontade deles deveria decidir se elas podem ou não usar DIU? Que século é hoje?
Já imaginou se as farmácias exigissem das mulheres carta de autorização dos seus companheiros para comprar anticoncepcional? Absurdo, né? Nesse sentido, deputados federais e estaduais já se apressaram e propuseram projetos de lei para proibir planos de saúde de exigirem o consentimento dos maridos para a inserção de DIU em mulheres casadas. Os projetos foram propostos após a revelação que planos de saúde estavam impondo a necessidade do consentimento do cônjuge para a colocação do DIU.
Brasil, 2021. É urgente uma discussão e implementação de políticas públicas eficazes (e laicas!) sobre direitos sexuais e reprodutivos. E nossos legisladores poderiam começar por repensar a Lei n° 9263/96, que trata de planejamento familiar - essa lei traz a exigência de consentimento do cônjuge para esterilização voluntária (laqueadura e vasectomia), que é absurda e deveria mudar.
Já a tal exigência de consentimento para colocar DIU é só uma piração de uma sociedade conservadora machista (além de não estar na lei, é antiética).
Todo dia o Estado nos diz que o corpo é nosso, mas as regras… ah, as regras quem faz é ele. Regula nossos corpos como se fossem coisa pública, disponíveis à vontade legislativa. E não, não estou me referindo ao aborto (embora ele também possa e deva ser incluído na conversa). Saúde sexual e reprodutiva vai muito além do aborto.
Quem deveria escolher quem pode ter acesso ao seu corpo é só você mesma: nem marido, nem filho, nem Estado, nem ninguém deve poder ter essa prerrogativa no seu lugar. Então a pergunta é: por que diabos o Estado tem que legislar e controlar o corpo das pessoas? Lei pro Estado dizer o que podemos ou não fazer com nosso corpo e vida? Oi?
Se você quiser injetar botox e silicone até no branco do olho, tudo certo: ninguém diz nada e há um bando de médicos dispostos. Experimente não querer ter filhos. Fica difícil achar médicos que façam laqueadura em mulheres sem filhos e que não sofram de objeção de consciência. E o Estado faz de tudo para que você não possa simplesmente decidir que não quer filhos, sendo que, para início de conversa: o que o Estado tem a ver com uma decisão individual que só impacta a vida do indivíduo que tomou a decisão?
Além de consentimento do cônjuge, a lei fala em 25 anos ou 2 filhos vivos (como condição para a esterilização voluntária). Oi? Por que achamos normal o Estado se meter em matéria de foro íntimo, individual, onde ele não deveria se meter? A única condição para que se realize a esterilização deveria ser o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado.
Pessoas adultas, maiores de idade e capazes, deveriam ter a prerrogativa de decidir sobre sua própria capacidade sexual e reprodutiva. E, nesse sentido, deveriam receber informação adequada para que possam tomar decisões baseadas em fatos, em ciência, não em ideologia, não em crenças.
Conheça AQUI o teor completo da LEI Nº 9.263, DE 12 DE JANEIRO DE 1996, que regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. Abaixo o artigo 10:
Art. 10. Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações:
I - em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce;
II - risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos.
§ 1º É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes.
§ 2º É vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores.
§ 3º Não será considerada a manifestação de vontade, na forma do § 1º, expressa durante ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente.
§ 4º A esterilização cirúrgica como método contraceptivo somente será executada através da laqueadura tubária, vasectomia ou de outro método cientificamente aceito, sendo vedada através da histerectomia e ooforectomia.
§ 5º Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.
§ 6º A esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada na forma da Lei.
Leia também:
Breve história dos dispositivos intrauterinos
Projetos de lei querem impedir que marido tenha que consentir em colocação de DIU