o dia a dia no Brasil de 2021
Uma cena comum do cotidiano: o incrível fenômeno das pessoas que acham que o mundo foi feito para (e só) elas. Elas estão em todos os lugares. E a pandemia me deixou mais intolerante a elas. É possível sair de casa e não brigar com estranhos na rua? Em 2021? É possível?
Posso contar um causo?
Certo dia, só não dei um tiro numa bípede circunstancial porque não ando armada.
Estava na farmácia esperando para pagar e, de repente, senti como uma sombra. Sabe quando a gente sente alguém atrás, próximo demais? Então… Olhei e lá estava uma senhora grudada, quase montada em cima de mim.
NUMA FARMÁCIA VAZIA QUE TEM MARCAS ENORMES NO CHÃO MARCANDO LUGARES E DIZENDO PARA MANTER DISTÂNCIA.
Olhei para trás e disse “pode manter distância, tem até marca no chão”... Apontei a marca no chão.
“Ah, mas estamos de máscara então não tem problemas…”...
“Tudo bem,mas mantenha a distância, só isso”.
Ah mas blablabla e NÃO CALOU MAIS A BOCA!!!
Você está errada - e eu só pedi pra ficar longe, fim.
NÃO CALOU A BOCA!!!
O que se seguiu, senhoras e senhores, foi cena de filme ruim. Cômico, não fosse trágico.
“Ah mas eu não peguei”.
Que bom né.
“Ah mas ninguém lá em casa pegou”.
Tomara que ninguém da sua família morra.
“Podia ser educada”.
Não sou educada com babaca, e só lhe pedi para manter distância, ô babaca.
“Se não quiser ouvir, tampa o ouvido”.
Juro, a escrota disse isso.
Aí eu parei de apenas pensar tudo que eu queria dizer e o tom de voz foi do silêncio ao grito.
“Ô FILHA DA PUTA, EU SÓ PEDI PARA MANTER DISTÂNCIA”.
“POIS EU ESPERO É QUE PEGUE E MORRA!”
E numa boa? Espero que esse tipo de gente escrota seja extinta mesmo. Vai se fuder. EU SÓ PEDI PARA MANTER DISTÂNCIA.
A cereja do bolo são os funcionários omissos que não dizem nada e só deixam acontecer. Fazem a egípcia como, aliás, funcionários de todos os lugares onde se vai, do mercado à farmácia. Cliente tira máscara (ou deixa nariz de fora), desobedece distância, etc, e os funcionários dos lugares fazem a egípcia (quando não são eles mesmos fazendo errado; já vi funcionário dentro de mercado com máscara no queixo).
O governo local, obviamente, não fiscaliza. Como não levam multas e não dói no bolso, os lugares continuam sendo esses lugares de funcionários omissos, que deixam os clientes escrotos e sem noção fazerem o que querem. Hoje, semanas após o causo, precisei ir à farmácia. Tinha uma senhora lá dentro sem máscara (era outra farmácia).
O ser humano é muito sem noção e o problema é transnacional. No seriado Pretend it's a City (Faça de conta que é uma cidade), Fran Lebowitz vai explicando os transtornos de viver em Nova Iorque. Boa parte desses transtornos gira em torno do comportamento de seres humanos que habitam o espaço urbano sem considerar que esse espaço é coletivo (e não uma extensão da própria casa).
A absoluta incapacidade de entender que os outros existem (sim, existem...) e que o espaço urbano é coletivo tem me levado a (quase) brigar com estranhos na rua e a evitar sair de casa. A pandemia amplificou a sem noçãozice dos sem noção. Outro dia uma amiga relatou que um homem foi para cima dela porque ela o cobrou por estar sem máscara. E há milhares de pessoas aglomerando, sem máscara, para curtir o carnaval que oficialmente foi cancelado, mas extraoficialmente segue acontecendo.
Essa gente sem noção de coletivo tem que acabar. É uma questão de sobrevivência do coletivo. O incrível fenômeno das pessoas que acham que o mundo foi feito para (e só) elas precisa parar de ser uma cena comum do cotidiano.