maculadas, mulheres que cantam
Na história da música brasileira, não são raras as mulheres que foram consideradas livres demais ou loucas, e tiveram problemas com álcool, drogas, dependência química, depressão. Tiveram problemas por serem julgadas ou foram julgadas por terem problemas? Na infértil discussão do ovo e da galinha, existe a mulher, defeituosa desde sua formação, feita de uma costela curva, torta.
Desde a inquisição, não apenas instituições, mas também discursos estigmatizam a mulher como inferior e impura, contribuindo para a justificação ideológica de sua desvalorização. A contradição interna no pensamento conservador oscila entre as figuras de Maria, exaltada, e Eva, maculada. Prevalece, na mentalidade do senso comum, a formação e o triunfo do tabu sexual. Eva é responsável pela queda do homem e é, portanto, a instigadora do mal. Esse estigma se propaga pelo gênero feminino.
Mulheres que escolhem a música e os palcos encaram esse estigma sob os holofotes. São apedrejadas por sua liberdade, são chamadas de loucas por sua psiquê. Muitas recorrem a fugas narcóticas e perdem o controle. Algumas se afastam dos palcos para se cuidar e outras, como Amy Winehouse, são engolidas pelo cenário em que estão.
Rita Lee, admirada no cenário do rock brasileiro, foi protagonista de algumas situações envolvendo entorpecentes. Na década de 1970, foi presa por porte de maconha e revelou já ter usado outras substâncias, como LSD. Em 2012, a cantora se afastou dos palcos. Em 2017, numa entrevista a Pedro Bial, contou que estava careta há 11 anos.
Ana Cañas nunca havia ingerido álcool até a morte do pai, que era alcóolatra. Para tentar superar a perda, começou a beber sem parar, inclusive antes de fazer shows, numa auto sabotagem. Até que o amigo Ney Matogrosso perguntou a ela se ia reduzir seu talento aos porres que tomava antes de cantar. Depois disso, ela parou de beber.
Vanusa, morta em novembro de 2020, não queria que a vissem doente. Teve poucas aparições na imprensa ou redes sociais nos últimos anos, com o desenvolvimento de sua doença. Queria que as pessoas lembrassem dela nos palcos, cantando sua música. Importante na cena musical brasileira, Vanusa foi uma pioneira numa época em que poucas mulheres tinham voz ativa na música brasileira como compositoras.
A cantora Vanusa foi uma mulher de personalidade forte e decidida que dizia fazer só o que tinha vontade. Seu primeiro sucesso foi Manhãs de Setembro, de 1973, música que caiu no gosto do público. Gravou também Paralelas, de Belchior, que foi outro grande sucesso. Feminista desde muito jovem e antes da existência das redes sociais, Vanusa fez muitas músicas para as mulheres na década de 70 e dizia que escrevia com muita raiva, contra o preconceito.
Ela declarava ser a favor de que a mulher trabalhasse fora de casa e tivesse seu próprio sustento, sua independência. Na música, Vanusa não se prendia a um só estilo e cantou do rock à MPB, mas se consagrou como uma cantora romântica. Foram mais de 20 discos, em mais de 40 anos de carreira.
Aos 16 anos, Vanusa já fazia shows como crooner de uma banda. Dos palcos, foi para a tv, participou de vários programas e chegou a emprestar a voz para a música de abertura do Fantástico, na única vez em que a abertura do programa foi cantada. Com a fama, vieram problemas e ela teve que lutar contra depressão e dependência química por muitos anos.
Dois episódios marcaram uma fase difícil para a cantora. Em 2009, numa apresentação que viralizou na internet, ela se atrapalhou com a letra do hino nacional. Em outro show, chegou a misturar a letra de duas músicas. Depois desses episódios, Vanusa se internou numa clínica para tratamento de desintoxicação durante 6 meses. Foi sua primeira internação. Ela tomava muitos tarja preta e desenvolveu compulsão por remédios.
Em 2015, voltou a gravar depois de 15 anos. Com as internações por depressão e dependência química cada vez mais constantes, foi seu último disco. Sua voz forte, decidida e cheia de si foi se calando aos poucos.
Teve um fim de vida dramático que aproxima a cantora da história de grandes estrelas. Longe dos palcos e dos estúdios devido a problemas de saúde, Vanusa teve um fim de vida em reclusão. Lembra o crepúsculo solitário e penoso de divas da música como Maria Callas e Edith Piaf, imortalizadas por canções tristes sobre o amor. Coincidências à parte, Vanusa gravou uma versão de Hymne à l’amour, um clássico de Piaf, no álbum Hino ao Amor, de 1994. Como a intérprete francesa, morreu afastada da mídia após profundo sofrimento físico e dores emocionais por amores perdidos.
A cantora tinha depressão e problemas de saúde causados pelo uso excessivo de medicamentos, que a deixaram debilitada. Em setembro, esteve internada com problemas respiratórios. Em novembro, morreu na casa de repouso em que estava. Uma mulher libertária, vanguardista, premiada em festivais internacionais e que vendeu milhões de cópias de suas músicas, além de atuar em telenovelas e no teatro. Morreu só, como a Eva maculada, expulsa do paraíso e esquecida.
***o texto acima foi publicado na edição nº 29 da Revista Sotaques, que pode ser acessada online AQUI***