precisamos falar sobre aborto
“Aborto é um assunto difícil porque envolve religião”
NÃO.
Aborto não envolve religião. União civil homossexual também não. E, a bem da verdade, nenhum assunto, fora das igrejas e templos, envolve religião. Os religiosos é que insistem em envolver religião em todos os assuntos, a despeito das crenças (ou falta delas) alheias.
Precisamos falar sobre aborto.
E precisamos falar livres de paixões, calcados na racionalidade e nos dados de institutos sérios. Com o cérebro, não com o fígado. Aborto não é palavrão. É necessidade. É realidade. É verdade. É saúde pública. É, em casos como estupro, risco de vida ou anencefalia, direito e humanidade.
Falta humanidade ao discutir o assunto - exemplificada de forma concreta num caso que ganhou as manchetes nos últimos dias. Uma menina de 10 anos sofreu violência sexual de um familiar e está grávida. Por lei, ela tem direito a interromper a gestação sem qualquer análise da justiça ou boletim de ocorrência. No entanto, a justiça está negando este direito e, segundo a assistência social da cidade, a interrupção da gestação está sob análise da justiça.
Parece um conto de horror surreal, mas é uma história real acontecendo agora, no Brasil de 2020.
Estão discutindo algo que sequer deveria ser discutido. É uma criança. Foi estuprada. Ela e a família querem o aborto. Há risco de vida. O que o judiciário tem que discutir? Ademais, independente da idade, vítimas de estupro têm direito ao aborto legal, que é permitido em mais dois casos: anencefalia do feto e risco à vida da gestante.
Além do estupro, a gravidez de uma criança envolve também o risco de vida. Pouco se fala sobre problemas decorrentes da gestação de uma criança, mas as consequências para a saúde podem ser muito sérias. É uma gravidez de risco. Numa idade tão precoce, há uma série de complicações associadas.
Estamos falando de alguém que não tem condições nem mesmo físicas de levar essa gravidez adiante. Estamos falando de uma criança de 10 anos de idade que é abusada desde os 6. Ninguém pensa no sofrimento mental e emocional dessa menina?
Se um embrião ou um feto te preocupam mais do que uma criança estuprada que engravidou, te falta humanidade. Estamos falando de uma criança. Violentada. E caso fosse uma mulher adulta, estaríamos falando de violência, de estupro. Se um embrião ou um feto te preocupam mais do que uma pessoa estuprada que engravidou, te falta humanidade.
Em nenhum caso se deve querer ditar a alguém violentada o que ela deve fazer. É muita soberba e desumanidade achar que tem esse direito.
Não deveríamos sequer considerar querer legislar o corpo alheio. Por que diabos quando se trata de reprodução achamos normal o Estado legislar corpos e vidas individuais? Não é só acesso ao aborto o problema - o acesso à laqueadura e vasectomia também é dificultado. Você pode responder criminalmente aos 18, mas não pode decidir não ter filhos?
Engraçada a quantidade de doutores com objeção de consciência para fazer laqueaduras ou abortos. Engraçado como ninguém encara fatos quando o assunto é interromper gravidez. Aborto ser ilegal não impede sua prática, só a torna menos segura e mata mais mulheres.
Nosso vizinho Uruguai legalizou e, nos 6 meses iniciais da legalização não registrou mortes de mulheres por aborto e segue um dos países com taxas de aborto mais baixas do mundo.
A política pública do governo uruguaio tem o objetivo de diminuir a prática de abortos voluntários a partir da descriminalização, da educação sexual e reprodutiva, do planejamento familiar e do uso de métodos anticoncepcionais, assim como serviços de atendimento integral de saúde sexual e reprodutiva. Dá para entender que isso é bem diferente de colocar o aborto como método contraceptivo e banalizá-lo?
O direito à vida não pode ser resumido à sobrevivência; se assim o for, deixamos nossa humanidade de lado. O direito individual à vida tem aspecto duplo: biológico (que se desdobra em direito à saúde, vedação à pena de morte, etc); condições espirituais e materiais mínimas (educação, cultura, meio ambiente saudável, inviolabilidade da intimidade, etc).
Constitucionalmente, o Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana – a vida inclui o direito a uma existência digna, tanto sob o aspecto material, quanto espiritual. Obrigar alguém violentada a ser mãe parece digno?
UPDATE:
A Justiça autorizou o aborto da menina de 10 anos estuprada - como se precisasse, né? Justiça finalmente autoriza que lei seja cumprida. Risos.
Justiça autoriza e, na reviravolta, o pedido de realização do aborto foi negado pelo hospital no ES - a desculpa é que não possui protocolo para realizar o procedimento. O impeditivo seria o avanço da gestação. Após a negativa, a menina viajou para outro estado acompanhada de uma assistente social para realizar o procedimento.
Que tudo dê certo e que, no futuro, ela possa superar todos os traumas associados ao que vem passando desde os 6 anos de idade. 🙏
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