o ódio do qual somos íntimos


Ainda não entramos no inverno, mas a cor de todas as estações tem sido o ódio. Nas vidas virtual ou real, tá cheio dele. As pessoas amam odiar. Odeiam por esporte. Odeiam porque estão entediadas. Odeiam porque odeiam. E, nesse Brasilzão cordial, não são poucas as notícias com as quais nos deparamos diariamente envolvendo ódio.

Há quem diga que a internet possibilitou o aumento da expressão do ódio das pessoas. Fica mais fácil atrás de uma tela, braços dados com o anonimato ou não. Mas vem cá, por acaso o ódio era menor antes? Fora do virtual há menos expressão de ódio? No mundo real o brasileiro tem ódio, e muito – é o que dizem os mais de 62 mil homicídios ao ano.


Um deles aconteceu há poucos dias no parque da cidade, localizado em área nobre da capital do país, distante poucos metros da Praça dos 3 Poderes. Um crime que diz muito sobre a barbárie surreal na qual estamos mergulhados, nos afogando. Um rapaz, suspeito de roubo de celular, foi espancado até a morte. E então 20 pessoas tornaram-se criminosas.

Um jovem morreu linchado por 20 pessoas e, ao final, a polícia civil concluiu que ele era inocente. E se fosse culpado? Olho por olho e terminaremos todos cegos. Enquanto sociedade, deveríamos esperar que indivíduos com condutas criminosas (sejam quais forem) fossem efetivamente punidos para que possamos sair de nossas casas em tranquilidade. Na terra da impunidade, linchamentos públicos (presenciais ou virtuais) são comuns.

 É Hobbes no século XXI. Somos a espécie mais irracional que habita este planeta. Eu diria até que somos um vírus bem burro, daqueles que mata seu hospedeiro (o que estamos fazendo com a Terra não é matar nosso hospedeiro?).

Divagações a parte, notícias de linchamentos recordam o tal estado de natureza de Hobbes. Para ele, a situação dos homens deixados a si próprios é de anarquia, geradora de insegurança, angústia e medo. Os interesses egoístas predominam e o homem se torna o lobo do próprio homem (“homo homini lúpus”). As disputas geram a guerra de todos contra todos (“bellum omnium contra omnes”) e as conseqüências desse estado de coisas é o prejuízo para a indústria, a navegação, a ciência e o conforto dos homens.

Muitos filósofos se ocuparam com a origem do Estado, com a validade da ordem social e política, a base legal. Em algum momento, o homem abandona o estado de natureza para se submeter ao Estado instituído por um pacto, um contrato. Mais segurança para todos, propriedade privada e coisa e tal. A sensação é que por aqui o pacto social se rompeu. Quando o Estado se omite, não atua...


As estatísticas nos contam que é muita gente que se acha acima das leis, não respeita nenhuma ordem social e política, trata seus semelhantes como nada. Por outro lado, é muita ineficiência de todas as instituições em todas as instâncias. Que vantagem você tem por respeitar as regras? No meu bairro sou xingada se ouso reclamar terem estacionado em fila dupla fechando meu carro e atrapalhando o trânsito.

A gente não pode mais ir e vir, essa é a verdade. Evito certos lugares e aglomerações para evitar, entre outras coisas, ter o celular roubado. Quem nunca? A gente se acostumou ao absurdo, a não ter liberdade. Naturalizamos o absurdo. Daí quando ocorre um espancamento até a morte, há sempre uma justificativa para o injustificável. O Brasil é um país brutal e a gente teima em carnavalizar tudo, em sorrir nas redes sociais. Essa brutalidade permeia todas as camadas sociais e faz com que a mentalidade da maioria nem considere a violência como tal. É normal.

Os níveis de violência são alarmantes. Criou-se um mito de país amistoso que se choca com a realidade. Enquanto esse mito persiste, fazemos de conta que o Brasil é um país civilizado. Importa discutir quem ele era? Linchamentos são justificáveis se a vítima não tiver reputação ilibada? Ainda que houvesse pena de morte no Brasil – e não há – o responsável pela sua aplicação seria o Estado. O responsável pela aplicação da justiça é o Estado. Qualquer coisa diferente disso não é democracia.

Por outro lado, a aplicação da justiça é falha. Inexistente, se considerarmos que nem 5% dos homicídios são solucionados e que nem 10% dos estupradores são punidos, por exemplo. Que justiça é essa? Dá para condenar quem vê a justiça com as próprias mãos como opção? A cultura da vingança está nos afundando na barbárie. Uma vida vale menos que um celular – o assaltante mata, o justiceiro mata. O ser humano é cruel.

O cidadão de bem pode ser mau caráter, hipócrita, criminoso. E tudo bem. Se matar para roubar um celular é um crime abominável, mas matar o ladrão para recuperar esse mesmo celular é aceitável, então não é a vida que é sagrada: é a propriedade. Existiria esse tipo de atitude tão normalizada se não houvesse tantos crimes, impunidades e omissões?


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documentário que investiga a onda de linchamentos no Brasil e mostra como essa violência, praticada muitas vezes por pessoas que se consideram cidadãos de bem, tornou-se cotidiana