a bunda, que engraçada

Por que quem aplaude a malandra empoderada está reclamando de uma surubinha de leve? Será que prestaram atenção nas imagens, na letra, no implícito, no contexto? Prestaram atenção de verdade ou apenas aplaudiram pois feito por alguém do seu time? Apenas repetiram, bem adestrados, “Que tiro!” (como se tiro fosse algo bom...)? Não sejamos hipócritas. Colocar a mulher em seu devido lugar de objeto soa como revolucionário por qual motivo, se objeto é o lugar que sempre lhe foi reservado?

Na Grécia antiga, as classes mais baixas eram mulheres e escravos. Platão, ao afirmar “se a natureza não tivesse criado as mulheres e os escravos, teria dado ao tear a propriedade de fiar sozinho”, nos diz muito sobre qual era a posição da mulher naquela sociedade. Além disso, a função primordial da mulher, em Atenas, era a reprodução da espécie. Mulher ser um objeto ou um incapaz que precisa de tutela está no berço do ocidente, da democracia. Historicamente, o lugar reservado às mulheres sempre esteve mais próximo de uma posse.

Há posse quando há desumanização do sujeito. Objetificação, desumanização e cultura do estupro estão interligadas, conectadas. Uma não existe sem a outra. É genial convencer as pessoas que ocupar voluntariamente o principal papel que sempre esteve reservado à mulher é empoderamento. Outras coisas machistas estão nas inimigas. Estar gostosa. Macho. Bunda. Dá-se importância demais a macho quando revolucionário seria a indiferença a eles. Analisem a obra.

Analisem o histórico, as outras músicas. A obra gira em torno de ser gostosa, macho, inimigas. Em que planeta mulher girando ao redor de velhos estereótipos femininos é empoderador peloamor da deusa? Parem e pensem. Ou assumam que tudo depende de quem faz. Não dá para condenar a globeleza, a mulata passista, as propagandas de cerveja... enquanto aplaude acriticamente sua cantora de estimação.



Não é possível ser contra assédio e aplaudir a objetificação, a transformação do sujeito em corpo – são coisas interrelacionadas. É a objetificação que leva à desumanização que, por sua vez, leva ao assédio, ao estupro, ao assassinato. Todos estes crimes, todas estas violências, são praticados contra não-sujeitos, contra quem o perpetrador da violência vê como objeto. Portanto, soa irônico e contraditório que quem diga atuar pelo empoderamento feminino atue a favor da objetificação.  

Leiam as estatísticas relativas a violência doméstica, violência sexual, exploração sexual, tráfico humano, turismo sexual. Elas falam sobre a realidade da mulher no Brasil. Dentro desse contexto, parece inteligente mostrar a mulher como pedaços de corpo? A desumanização da mulher enquanto sujeito e sua transformação em objeto, em corpo disponível, está na raiz da violência de gênero. E, no panorama geral, não faz diferença se quem escolheu se colocar como corpo disponível foi a própria mulher – ela continua ocupando o mesmo lugar, de objeto.

O termo empoderamento originalmente se referia a uma forma coletiva de poder, no qual uma mulher só é livre quando todas as outras também o forem. Empoderar mulheres não é hipersexualizá-las. As pessoas perdem tempo discutindo a celulite do clipe e não percebem que revolucionário seria nenhuma celulite ou falta dela ser discutida, nenhum corpo ser discutido publicamente e nenhuma mulher precisar de corpo para ser bem sucedida. Corpo nem deveria ser assunto. Empoderamento mesmo vai ser o dia que puderem vender música, voz e performance sem precisar mercantilizar corpos. Empoderamento é o corpo feminino deixar de ser uma mercadoria, estampado nu e sensualizando propaganda de tudo.

Nenhuma bunda empodera mulher alguma. Afirmo isso enquanto afirmo também a liberdade de todas as mulheres mostrarem suas bundas, se assim quiserem e desejarem. E nada tenho contra a Anitta – continuo achando ela uma baita empreendedora  e empresária, que lucra de forma inteligente e estratégica. É possível ser fã e admiradora da Larissa e, ao mesmo tempo, crítica do que Anitta representa.

Larissa... Que mulher! Inventou e deu vida magistralmente à Anitta. Rainha. Genialidade poucas vezes vista no mercado nacional. Acertou ao chamar bailarinas plus size para trabalhar com ela, tanto quanto errou ao fazer parceria com Mayra Cardi. Isso se chama humanidade. Sou fã e gostaria muito de tomar um drink e trocar uma ideia com ela. Que mulher! É ela quem se administra, se empresaria, se dirige artisticamente e trabalha o marketing como se fosse alguém com anos de experiência. Admiro demais a selfmade woman que ela é, mas... nem tudo que faz sucesso produzido por mulheres é empoderamento (e não há nada de errado em não ser 😉).




“Qual a diferença prática de um close de vários segundos em uma bunda com celulite e em uma bunda sem celulite? O foco ainda é a bunda. Não o rosto, nem a voz, mas a bunda. O corpo. É isso que nós somos? É isso que Anitta é? Um corpo?”
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