todo mundo tem lugar de fala

Quem frequenta redes sociais já deve ter visto a frase “este não é o seu lugar de fala!” ser usada como cala boca para silenciar pessoas das quais se discorda. Porém, a ideia de lugar de fala não vai no sentido de calar vozes ou censurar pensamentos, dando somente a um grupo o direito de falar sobre um assunto ou se posicionar sobre um tema. 

O conceito pode ser usado em diversos contextos, como comunicação, direito e análise do discurso. Uma das definições mais popularmente usadas atua no sentido de compreender de onde vem a voz que fala sobre determinado tema. Não é lugar no sentido de posse e, sim, de onde você fala e como suas experiências moldam sua visão de mundo.

 

Infelizmente, muita gente deturpa o conceito que se originou com Donna Haraway, filósofa e zoóloga estadunidense, acadêmica reconhecida na área de estudos da ciência e tecnologia, autora de diversos livros e ensaios fundamentais que relacionam temas da ciência e do feminismo. Em “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial", a questão de lugar de fala e identidade é aplicada aos saberes científicos, questionando a premissa de neutralidade, objetividade e universalidade incondicional do discurso científico. 

 

A leitura que se faz do lugar de fala é bastante equivocada. Esse conceito tem mais ligação com uma localização social, histórica, cultural e contextual de onde emana a voz e o que está sendo dito. Se relaciona à questão do prestígio ou desprestígio das classes sociais e dos gêneros. As pessoas confundem o lugar de fala com a lógica de autoridade e com argumentos de censura. Entretanto, todo mundo tem lugar de fala.

 

No último capítulo do seu livro sobre o tema, Djamila Ribeiro aborda brevemente os diversos lugares de fala e afirma que "todas as pessoas possuem lugares de fala, pois estamos falando de localização social". Ela também pontua a importância de determinados grupos privilegiados se perceberem a partir desse lugar. Você consegue perceber porque sua visão de mundo é como é?

 

O lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e, nesse sentido, Djamila aponta (no livro) a importância de ouvir diversas vozes nas análises do discurso e a necessidade de estar atento a quem enuncia a narrativa. Não é só o que se fala que importa, mas quem fala. 

 



Quando falamos de narrativas, o estudo e a observação delas deve ser capaz de revelar o lugar de fala que circunscreve cada discurso, sua moldura institucional, seu maior ou menor ajuste aos critérios que regem o prestígio e o poder na sociedade. Além disso, a leitura de qualquer fenômeno deve levar em consideração uma multiplicidade de narrativas e imagens, assim como discursos em circulação em determinada época. Cada momento representa perspectivas diferenciadas, que devem estar sempre relacionadas umas com as outras.

 

O algoritmo diariamente nos educa para o oposto disso, porém, deveríamos transitar por vários lugares de fala a fim de perceber a multiplicidade da constituição da vida intelectual, as afinidades eletivas, os interesses e as oposições entre grupos e linhagens intelectuais. Ideias, modos de ver e relatar o vivido, de interpretar o visto e o dito.

 

Todos os discursos são igualmente representações, detentores de uma verdade, cuja vigência dependerá do poder e do prestígio do quadro institucional que a sustenta. Perceber diferentes lugares de fala é perceber a posição que os discursos ocupam no conjunto dos saberes em circulação, em sua época e lugar. Os discursos revelam as identidades sociais dos grupos: sua posição, vinculação com correntes de ideias, diálogos com tradições. Os discursos são eles mesmos práticas, representações que afloram em um mesmo solo sócio histórico.

 

A gente tende a esquecer, mas todas as pessoas, por mais singulares e individuais que possam ser, nunca agem nem falam fora de uma rede discursiva e institucional que emoldura seus enunciados e possibilidades de ação. E tudo bem. O lugar de fala apenas ressalta a diferença de poder entre grupos e faz um chamado para a escuta dos grupos menos privilegiados. 

 

Ouvir mais. Dialogar mais. Não tem nada a ver com calar os outros. Todo mundo tem lugar de fala.

 

leia também:

O que significa lugar de fala? Conceito não é uma forma de calar as pessoas


livro:

RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala?. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017. 

pdf AQUI