a violência é do homem

Recorde de letalidade policial, aumento nos assassinatos em pleno ano de pandemia, diminuição de crimes patrimoniais, violência contra a população LGBTQIA+ em alta. O 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública no último dia 15 de julho, expõe um retrato da situação no país.

Os dados apresentados nesta edição do Anuário moldam um retrato das notificações oficiais de violência contra meninas e mulheres em 2020, período marcado pela pandemia de Covid-19. De modo geral, os resultados demonstram redução de praticamente todas as notificações de crimes em delegacias. Mesmo diante da redução, os números impressionam pela magnitude: 230.160 mulheres denunciaram violência doméstica (isto significa dizer que 630 mulheres procuraram uma autoridade policial diariamente para denunciar um episódio de violência doméstica). Seguindo a tendência verificada nos registros de violência doméstica, caíram também os registros de ameaça (-11,8%), e de estupro e estupro de vulnerável (-14,1%). 

Apesar da redução verificada nos registros policiais, o número de Medidas Protetivas de Urgência concedidas cresceu 4,4%, passando de 281.941 em 2019 para 294.440 em 2020. Os dados de chamados de violência doméstica às Polícias Militares no 190 também indicam crescimento, com 16,3% mais chamadas no último ano. Foram ao menos 694.131 ligações relativas à violência doméstica, o que significa que a cada minuto de 2020, 1,3 chamados foram de vítimas ou de terceiros pedindo ajuda em função de um episódio de violência doméstica.

Em 2020 o país teve 3.913 homicídios de mulheres, dos quais 1.350 foram registrados como feminicídios, ou seja, 34,5% do total de assassinatos. A taxa de homicídios de mulheres caiu 2,1%, mas os feminicídios cresceram. A maioria dos feminicídios no Brasil são feminicídios íntimos, perpetrados pelo parceiro da vítima, companheiro ou ex-companheiro - 81,5% das vítimas foram mortas pelo parceiro ou ex-parceiro íntimo, mas se considerarmos também demais vínculos de parentesco temos que 9 em cada 10 mulheres vítimas de feminicídio morreram pela ação do companheiro ou de algum parente.

Enquanto as armas de fogo respondem por 64% de todos os demais assassinatos de mulheres, a maioria dos feminicídios ocorreram com a utilização de armas brancas como facas, tesouras, canivetes, pedaços de madeira e outros instrumentos utilizados pelo agressor. Este fato reforça um elemento central para compreensão do feminicídio, que ocorre principalmente em decorrência de violência doméstica, sendo o resultado final e extremo de um continuum de violência. Por ser um crime de ódio e perpetrado por alguém próximo, muitas vezes em casa e após uma série de outras violências, o autor utiliza-se do que encontra à mão para o feminicídio.




Em 2020, foram 60.926 registros de violência sexual no Brasil, provenientes dos boletins de ocorrência lavrados pelas Polícias Civis.

A violência sexual pode ser definida como qualquer ato ou contato sexual onde a vítima é usada para a gratificação sexual sem seu consentimento, por meio do uso da força, intimidação, coerção, chantagem, suborno, manipulação, ameaça ou aproveitamento de situação de vulnerabilidade. O estupro é uma modalidade da violência sexual e um dos mais brutais atos de violência, humilhação e controle sobre o corpo de outra pessoa. 

Apesar do número elevado de casos, a pandemia parece ter contribuído para a redução dos registros de violência sexual, o que não necessariamente significa a redução da incidência. Isto porque os crimes sexuais apresentam altíssima subnotificação, e a falta de pesquisas periódicas de vitimização tornam ainda mais difícil sua mensuração. É difícil saber os impactos provocados pela pandemia de Covid-19 na vida de milhares de pessoas expostas à violência sexual, o que inclui o acesso a serviços de saúde e à justiça.

A análise nacional indica queda de 14,1% dos registros de estupro e estupro de vulnerável em 2020. Seguindo a linha de anos anteriores, a grande maioria dos estupros (73,7%) são cometidos contra pessoas vulneráveis. Segundo a Lei 12.015/2018, que tipificou o estupro de vulnerável no Código Penal, estupro de vulnerável refere-se àquele contra toda pessoa menor de 14 anos ou que seja incapaz de consentir sobre o ato, seja por conta de sua condição (enfermidade ou deficiência) ou por não possuir discernimento para tanto. 

A maioria das vítimas de violência sexual são crianças de 10 a 13 anos (28,9%), seguidos de crianças de 5 a 9 anos (20,5%), adolescentes de 14 a 17 anos (15%) e crianças de 0 a 4 anos (11,3%). 60,6% das vítimas tinham no máximo 13 anos quando sofreram violência, perfil que vem se confirmando ano após ano. Isso significa dizer que a maioria dos estupros que chegam até as autoridades policiais no Brasil são de crianças.

Quem estupra? 85,2% dos estupradores eram conhecidos das vítimas, quase sempre (96,3%) do sexo masculino, muitas vezes parentes e outras pessoas próximas que têm livre acesso às crianças e tornam qualquer denúncia ainda mais difícil. Apenas 14,8% dos estupros no Brasil foram de autoria de desconhecidos das vítimas. A maioria das vítimas é do sexo feminino (86,9%).

A análise do perfil racial das vítimas indica que 50,7% são negras, 48,7% brancas, 0,3% amarelas e 0,3% indígenas. Os crimes de estupro e estupro de vulnerável são um dos poucos delitos onde não se verifica grande diferença na vitimização entre negros e brancos.




No Brasil, a violência doméstica é naturalizada e minimizada. A ofensa verbal, a violência sexual e até as agressões físicas são muita vezes encaradas e comunicadas como parte do relacionamento íntimo, conceito errôneo e violento, que tem levado a vida e a esperança de muitas mulheres de forma sistêmica. A violência doméstica é um ciclo que precisa ser quebrado e combatido.
 
A linguagem importa. A forma como descrevemos as coisas importa. Fala-se em “violência de gênero” no lugar de “violência contra a mulher” quando está se falando, essencialmente, de violência contra mulheres e meninas. E falar em “violência de gênero” mascara a origem do problema e seus perpetradores.

O uso da palavra/conceito “gênero” vem com o pretexto de incluir pessoas trans que também são vítimas. Porém, elas também são vítimas por serem mulheres, por ocuparem o lugar social feminino. Basta ser identificada como mulher para se tornar, instantânea e involuntariamente, alvo de diversas violências diferentes, que atravessam tempo, fronteiras e culturas. Não é violência de gênero: é violência contra a mulher.

O próprio termo “violência contra a mulher” é problemático e traz, em si mesmo, o apagamento da realidade que deveria ser nomeada: a violência é do homem. 

Fala-se em quantas mulheres foram estupradas, mas não se fala em quantos homens estupraram mulheres. Fala-se em quantas mulheres e meninas foram assediadas, mas não se fala em quantos homens as assediaram. Fala-se em quantas adolescentes engravidaram, mas não se fala em quantos homens e adolescentes as engravidaram. Fala-se em quantas mulheres apanharam, mas não se fala em quantos homens bateram nelas. Fala-se no número de feminicídios, mas não se fala em quantos são os assassinos de mulheres.

O uso dessa voz passiva tem um efeito político. Tira o foco de homens e meninos e coloca em mulheres e meninas. O termo “violência contra a mulher” é problemático. É uma construção passiva. Não há agente ativo na sentença. É uma coisa ruim que acontece com as mulheres, ninguém está praticando essa coisa ruim. Homens não são parte disso. E o mesmo sistema que produz homens que abusam e são violentos com mulheres, produz homens que abusam e são violentos com outros homens. O perpetrador das violências contra mulheres e meninas é o mesmo perpetrador das violências contra homens e meninos.

A violência é masculina. A violência é do homem.


 
Para dados atualizados sobre violência no Brasil:
acesse o Anuário Brasileiro de Segurança Pública AQUI