521 anos de cordialidade

 Uma sociedade que esquece o passado não sabe qual sua identidade e não consegue ver de onde veio, quais acontecimentos pretéritos lhe constituíram, o que lhe marcou. Um presente sem passado é um mundo sem história, um mundo sem história é um mundo doente. Cordial aos 521 anos de idade, o Brasil está adoecido.

Um país no qual as pessoas amam odiar. Odeiam por esporte. Odeiam porque estão entediadas. Odeiam porque odeiam. No Brasil cordial, não são poucas as notícias com as quais nos deparamos diariamente envolvendo ódio. No mundo real o brasileiro tem ódio – é o que dizem as dezenas de milhares de homicídios ao ano. É Hobbes no século XXI.

As taxas de violência remetem ao estado de natureza de Hobbes. Para ele, a situação dos homens deixados a si próprios é de anarquia, geradora de insegurança, angústia e medo. Os interesses egoístas predominam e o homem se torna o lobo do próprio homem (“homo homini lúpus”). As disputas geram a guerra de todos contra todos (“bellum omnium contra omnes”) e as consequências desse estado de coisas é o prejuízo para a economia e conforto dos homens.

Muitos filósofos se ocuparam com a origem do Estado, com a validade da ordem social e política, a base legal. Em algum momento, o ser humano abandona o estado de natureza para se submeter ao Estado instituído por um pacto, um contrato. Mais segurança para todos, propriedade privada e coisa e tal. A sensação é que, no Brasil, o pacto social se rompeu. Quando o Estado se omite e não atua, tem-se a insegurança, todos contra todos.

 

Brasileiros não podem mais ir e vir, essa é a verdade. A gente se acostumou ao absurdo, a não ter liberdade. Naturalizamos o absurdo. O Brasil é um país brutal e a gente teima em carnavalizar tudo, em sorrir nas redes sociais. Essa brutalidade permeia todas as camadas sociais e faz com que a mentalidade da maioria nem considere a violência como tal. É normal.

 

Criou-se um mito de país amistoso que se choca com a realidade. Enquanto o mito persiste, faz-se de conta que o Brasil é um país sem níveis de violência alarmantes. Fingimos normalidade em meio ao caos. Dezenas de milhares de mortes violentas ao ano, todos os anos. As taxas de violência contra mulheres, LGBTs e minorias em geral estão entre as maiores do mundo. Também somos líderes nas violências contra as maiorias, convém lembrar.

 

Seguimos fingindo que não é conosco. De onde vem a corrupção, a violência, a agressividade e a discriminação racial que emergem na cultura nacional? As estatísticas apontam na direção de um país violento, hostil, transbordante da cordialidade nociva que gerou guerras silenciosas e construiu muros. A conta não bate. Entorpecidos enquanto sociedade, não assumimos nossa parcela de responsabilidade no problema.

 

O desrespeito aos direitos humanos faz parte da história do Brasil e segue firme e forte em 2021. Estado e instituições seguem inaptos. Salve-se quem puder. Farofa pouca, meu pirão primeiro. Esse jeitinho nos leva cada vez mais rumo ao abismo. Ensaio sobre a cegueira ao vivo e a cores. Futebolização da política e de assuntos complexos, somada ao déficit educacional, dá nisso. 

 

O país amistoso é uma alegoria que não corresponde aos números, ao cotidiano. Que país é esse? Somos uma sociedade violenta, pobre e profundamente ignorante. Quanto antes admitirmos isso e encararmos o que nos trouxe até aqui, melhor. Enquanto continuarmos adiando discussões sérias, continuaremos cavando o fundo do poço até cairmos num poço sem fundo.

 

O processo histórico que gerou essa identidade nacional violenta começou há mais de 500 anos, no impulso trazido pela colonização ibérica. A influência colonial é elemento decisivo para entender o Brasil contemporâneo. Não é o mesmo paternalismo, de raízes coloniais e barrocas, que forma, ainda hoje, abertamente ou não, o núcleo de quase toda atividade política no Brasil? 

Em sociedades de origens personalistas como a brasileira, os vínculos pessoais foram sempre os mais decisivos. A ordem social brasileira se nutre de personalismos e preferências pessoais mais do que da neutralidade jurídica indispensável para a adoção de qualquer regime democrático. A identidade nacional se adapta melhor à obediência a poderes autoritários, e não ao cumprimento de regras impessoais, baseadas em princípios abstratos. O Brasil é predisposto a populismos e autoritarismos, e qualquer organização política é necessariamente precária.

Desde a colonização, o país vivencia o predomínio de interesses particulares sobre um projeto nacional. Assim nascem e se multiplicam as violências. A cordialidade brasileira não exclui a violência: ao contrário, o brasileiro cordial é dado a atitudes extremas, capaz de agir com extrema violência. Extrema porque é uma violência que atua fora dos meios legais de coerção, e extrema porque é a expressão de um comportamento incapaz de se moldar a padrões legais e à ordem pública.

A lógica da espiral de ódio que nos trouxe até 2021 é a da esfera privada e seus códigos particulares. A violência que não é a violência monopolizada pelo Estado e, sim, a violência privada, sancionada por códigos particulares. O cidadão de bem, cordial, é o protótipo do não-cidadão, pois o seu perfil não se adequa à esfera pública, simbolizando uma sociedade que prefere obedecer a assumir responsabilidades. Procuramos salvadores da pátria, não é mesmo?

Desde a colonização, a lógica do sistema patriarcal é obstáculo à expansão da atividade política. Como consequência, o espaço público se pauta por regras próprias da esfera privada. O relacionamento entre as pessoas se dá numa conduta cordial, sobre bases personalistas, de forma a reconhecer, pessoal e diretamente, cada um com quem mantêm alguma ligação. Sabe com quem está falando?

As relações familiares continuam a ser o modelo de composição social. Por isso, as pessoas não conseguem compreender a distinção fundamental entre as instâncias públicas e privadas. O Estado é visto pelos brasileiros como uma espécie de segunda casa, povoada por familiares e amigos, resultando em uma sociedade patrimonialista. E no Estado patrimonialista, a elite se junta para tirar proveitos privados daquilo que é público. 

Não há lugar para o isento, indivíduo abstrato e neutro: ele é sufocado por relações que sacramentam a hierarquia e a desigualdade. Não há base satisfatória para a construção de um Estado democrático que pressupõe a despersonalização. É por isso que a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido, para citar Sérgio Buarque de Holanda.

Portugal não levou em conta o projeto de construir uma civilização e atuou tragado pelos interesses imediatos de uma colonização predatória e pouco ligada a motivações civilizacionais. Como o brasileiro não criou raízes, não buscou criar uma obra duradoura, visou apenas explorar os lucros. 

A superação da cordialidade violenta só pode se concretizar com a superação do personalismo e do aristocratismo herdados da colonização. Talvez a partir da racionalização da sociedade sejamos capazes de superar a tendência ao populismo e ao autoritarismo que nos trouxe até 2021 e seus arroubos violentos, anti-democráticos. Talvez. 

 

***o texto acima foi publicado na edição nº 30 da Revista Sotaques,
que pode ser acessada online AQUI***