não se relativiza censura

o texto abaixo é uma releitura (ou seria atualização?) - o original pode ser lido AQUI

Nenhuma censura deveria ser tolerada. Jamais. Se temos alguma estima genuína pela menina democracia, a liberdade de expressão deveria ser cláusula pétrea levada a sério na prática, não só nos artigos. Precisamos ter a dimensão do que significa proibir mostras de qualquer tipo de arte (cinema, literatura, plásticas, teatro, dança, fotografia). Precisamos ter noção da gravidade disso quando praticado pelo Estado.

Não se relativiza censura. Não se defende censura. Não se aplaude censura. Toda arte que alguém faz tem potencial para ser ofensiva (e ofender!) a um outro alguém.Tudo que qualquer pessoa diga (tudo!) pode soar ofensivo (e ofender!) a alguém. E tudo bem. Nem por isso devemos proibir artes e discursos.
Liberdade de expressão é, também, um exercício de tolerância. Se você não gosta, boicota. Se assina e não está mais gostando, cancele a assinatura. Se você se incomoda com algum perfil do face ou do insta, silencie, bloqueie. É proprietário de um cinema? Não exiba o filme que julgar inadequado, imoral. Tem filhos e quer protegê-los de alguma ameaça moral na sua visão de mundo? Cuide dos seus filhos, cuide da sua casa. Não seja deselegante e não queira cuidar da minha casa, da minha rede social ou da minha vida.
Conviver com as diferenças e as discordâncias faz parte da democracia. Faz parte da vida em sociedade. 2020. E a sensação é que voltamos no tempo. O bug do milênio, na verdade, nos jogou alguns séculos para trás? Ao longo da história, períodos de decadência econômica e social muitas vezes acompanham uma forte onda de conservadorismo, com grupos divergentes lutando para impor suas próprias agendas morais sobre os outros.
Será coincidência o hoje? Não me surpreendo com exposições encerradas precocemente, juízes proibindo peças e filmes, gente aplaudindo relativização de censura. Quem se surpreende? Parabéns aos hipócritas que contribuem para o index de obras proibidas. Que esperar de um país no qual até o judiciário se sente à vontade para desrespeitar a constituição? 
O princípio constitucional da liberdade de expressão é protegido pelos artigos 5 e 20, além de ter se tornado cláusula pétrea por meio do artigo 60. Apesar disso, membros do judiciário acham normal ordenar a retirada de programas do ar e proibir mostras de arte.


Não tenho forças ou disposição para defender performance de gente sem roupa ou sátiras religiosas, novidades tão velhas que essa indignação está no mínimo uns 50 ou 70 anos atrasada. Nudez ainda choca? Piada com Jesus gera atentado, tal qual Maomé? Façam-me o favor. 

Não é pela má arte. Essas polêmicas fabricadas provavelmente funcionam como balões de ensaio e medem a temperatura de mobilização das redes. É sobre a capacidade de mobilização, de domínio das redes sociais e de controle da narrativa. É sobre um tipo de conhecimento e compreensão de como as pessoas se organizam hoje.

As notícias falsas, notícias manipuladoras e campanhas focadas estritamente em temas do momento, da moral e dos bons costumes, confundem e corrompem o processo democrático. A verdadeira democracia requer educação, acesso a múltiplas e confiáveis fontes de informação e de opinião, debate aberto sem intimidação. Isso significa combinar o domínio da maioria, o respeito pelas minorias e a dignidade humana de todos.

Nas sociedades democráticas, a liberdade de expressão não é apenas um valor positivo, mas essencial à existência dessa forma de governo. E quando a liberdade de expressão está em perigo, todas as demais liberdades se colocam em perigo. Permitir que a liberdade de expressão seja regulada não funciona. Qualquer regulação será feita com uma régua para atender conveniências do momento ou interesses de algum grupo. Hoje você pode até concordar com o grupo no poder. Amanhã, outro grupo te perseguirá porque você pensa diferente.

As soluções reais levariam no mínimo uma geração para acontecer — dentre as quais educação de qualidade que inclua arte e filosofia, além do aprendizado por meio de leitura crítica e contexto histórico. O problema é que não há nenhuma vontade política verdadeira nesse sentido. Restamos ridículos, discutindo coisas que existem desde os primórdios (a arte, a piada, a nudez). enquanto o poço se aprofunda e os falsos moralistas conquistam corações e mentes. 

Velhos clichês são requentados e revitalizados — o artista amoral, a esquerda perversa sexualmente, a arte que não é arte, o dinheiro público desperdiçado blábláblá. Qual o estrago que essas intervenções têm feito no imaginário popular? O que elas autorizam? Quando autoridades estatais incitam que só há uma forma de ver a religião e as relações humanas, é um sinal para fanáticos se sentirem legitimados a atacar aquilo que considerem que não deve ter lugar no país.
O Estado deve proteger os direitos humanos. De todos.


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