se eu morresse amanhã


Boechat não pensava que morreria daquele jeito, numa mistura de acidente aéreo e rodoviário. Helicóptero cai e é atropelado por caminhão. Quem imagina isso? Quem imagina ser atropelado por um mar de lama durante o almoço? Ou ser queimado vivo enquanto dorme num container? A gente imagina morrer de morte morrida, de velhice. Uma bala perdida não é lá algo muito acidental, convenhamos.

Mortes evitáveis e desnecessárias são lugar comum no país dos mais de 60 mil. Mais de 60 mil homicídios. Mais de 60 mil estupros. Números de guerra num território em paz. Paradoxal. Irônico. Trágico. Real. A realidade nua e crua é essa: somos uma sociedade violenta e desconhecemos o significado de prevenção. Viver por aqui aumenta a probabilidade de morte evitável. O acidente de trânsito está logo ali, dobrando a esquina.

Nunca achamos que vai acontecer conosco. Até que acontece. Nunca achamos que pode ser a gente. Até que é. Se eu morresse amanhã, partiria feliz, tendo feito tudo o que quis? Ou partiria frustrada, amargurada? Teria vivido tudo que devia ter vivido? Nunca pensamos nesse tipo de coisa, mas qualquer um de nós pode ser a próxima Marielle e morrer metralhado, na saída de um evento, ou alvejado enquanto assiste à aula.

A vida acontece sem aviso. A morte, também. Enquanto respiramos, deixamos de nos preparar para o que acontece, tanto quanto não estamos preparados para cessar a respiração e o acontecimento. Despreparados. Desprevenidos. Com uma probabilidade aumentada de sofrer acidentes, a depender da geografia. Com uma probabilidade aumentada de morte evitável e desnecessária, a depender do povo, da raça e do gênero. Deixamos de compactuar com a prevenção, tanto quanto desconhecemos seu significado.




Há poucas semanas, um cidadão de bem adentrou um prédio público da capital do país portanto alguns itens curiosos na mochila. Por uma dessas coincidências da vida, trabalho naquele prédio, naquele andar. Suas armas eram facas de caça e besta. Poético, não fosse trágico. Ninguém foi ferido e as armas não chegaram a ser utilizadas, mas... e se? E se tivessem sido? Um dia comum de trabalho e, de repente, fim. Teria dito a quem amo, que os amo?

Não faz muito tempo, soube que uma amiga a quem estimo muito está com um tipo raríssimo de câncer. Aos 35 anos de idade. Assim, sem aviso. Gente que não faz mal a ninguém. Gente que espalha empatia e compreensão. Gente que inspira e cuja roleta sorteou esse número. Maktub! O que diz seu biscoito da sorte? Estamos preparados para a filosofia diante das perdas?

Se eu morresse amanhã? Teria comido o que queria comer? Diariamente a gente evita. Comidas. Bebidas. Pessoas. Decisões. Diariamente a gente foge. Da realidade. Do outro. De si. E se, naquele dia, a arma fosse disparada? Podia ser eu o alvo acidental da besta. Teria sido quem queria ser? Dito o que queria dizer? Se o meu biscoito afirmasse que o tempo acabou... Teria feito do meu tempo aqui, o meu tempo?

Estamos (todos!) morrendo com o passar dos dias. Essa é a única verdade da qual não podemos escapar. Desde que nascemos, a única verdade da nossa existência é que tudo terá um fim (algum dia). Aquele tipo de verdade com potencial para paralisar a partir do medo – ou, ao contrário, motivar a partir do desejo de explorar, experimentar, conhecer... Viver. Motivar a partir da verdade: essa é a nossa única chance de fazer valer a pena. Há esperança de deixar boas memórias para nossas ações?

Paralisia. Ou motivação. Escolhas.




“We are all dying, every moment that passes of every day. That is the inescapable truth of this existence. It is a truth that can paralyze us with fear, or one that can energize us with impatience, with the desire to explore and experience, with the hope- nay, the iron-will!- to find a memory in every action. To be alive, under sunshine, or starlight, in weather fair or stormy. To dance with every step, be they through gardens of flowers or through deep snows.”
― R.A. Salvatore







...antes de embarcar no helicóptero... o último programa de Boechat 👇