a banalidade do mal
Alexander Soljenítsin (1918-2008), escritor
russo, autor do monumental Arquipélago Gulag, escreveu que os piores vilões de
Shakespeare já não metiam medo aos homens do século 20. Os relatos de
Soljenítsin, que sofreu na pele os crimes do regime soviético, demonstram o
perigo e a tragédia do momento em que a ideologia substitui a consciência.
(...)
Na era moderna, em especial no século passado,
a política adquiriu cores de uma religião – ou de uma fé. Os modernos
movimentos ideológicos de massa substituíram e aniquilaram a moral. Em nome de
um ideal de sociedade, tudo torna-se possível: matar, roubar, mentir,
corromper. Nada é pessoal. É tudo em nome do partido, da raça, da nação. Quando
estamos munidos de uma ideologia, é possível eliminar da agenda moral a
consciência do mal como parte de nós mesmos.
Václav Havel (1936-2011), escritor e político
checo, ressaltou que a ideologia é uma forma ilusória de se relacionar com o
mundo. Ela oferece os seres humanos a ilusão de uma identidade, de dignidade,
de pertencimento e torna mais fácil a aceitação. Ela permite que as pessoas
enganem a sua consciência e que a ocultem de si mesmos. É um véu, atrás do qual
os seres humanos podem esconder a sua própria existência caída, sua banalização
e sua adaptação ao coletivo. É uma desculpa que todos podem usar – desde o
verdureiro, que esconde seu medo de perder o emprego por trás de um alegado
interesse na unificação dos trabalhadores do mundo, até o mais alto funcionário
público, cujo interesse em permanecer no poder pode ser camuflado em frases
sobre o serviço para a classe trabalhadora e para a sociedade. A principal função
da ideologia é proporcionar às pessoas a ilusão de que a sociedade está em
harmonia com a ordem humana e em rumo linear à salvação.
Considerações semelhantes foram feitas por
Hannah Arendt (1906-1975), filósofa política alemã de origem judaica.
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O Grande Ditador, Chaplin |
Quando foi convidada para acompanhar o
julgamento, Arendt já era uma filósofa renomada, especialmente pelo livro
Origens do Totalitarismo, de 1951. Nessa obra, ela realçou a singularidade do
totalitarismo como nova forma de governo baseada na organização burocrática de
massas e apoiada no emprego do terror e da ideologia. Hannah Arendt coloca o
nazismo e o stalinismo diante do mesmo tribunal e ressalta que as origens dos
totalitarismos do século 20 estavam nas ideias, nas convicções e nos ideais,
tanto das elites como dos povos.
No entanto, após assistir ao processo de
Eichmann, Arendt teve certeza de que suas explicações anteriores não bastavam
para esclarecer a transformação de um cidadão comum em um assassino genocida. O
totalitarismo tinha sido possível não somente graças a uma tropa – mas graças a
personagens quaisquer e banais, facilmente dispostos a abdicar sua faculdade de
pensar em prol da fidelidade ao grupo ou do projeto político que tanto
defendiam.
O que mais impressiona nos relatos de Arendt é
a caracterização de Eichmann. O tenente-coronel nazista não é descrito como um
monstro ou um exaltado. Se assim fosse, sua loucura poderia explicar o horror
de seus atos e o manteria afastado das pessoas comuns, diferente de nós. Mas
não. Era um banal – um primo, parente, amigo, acolhedor e colega. Era um
cidadão comum – disposto a praticar atos monstruosos em nome da sua ideologia.
O monstro cede lugar a um funcionário medíocre, um ativista incapaz de refletir
sobre seus atos ou de fugir aos clichês burocráticos.
Nada disso serve de desculpas. A culpa original
de Eichmann é usar a fidelidade ao grupo como justificativa para suprimir a
capacidade de pensar. Graças a isso ele se torna capaz de agir como se não
existissem considerações morais. Obedecia a ordens, sem considerar as
implicações delas. Ao tornar-se instrumento do funcionamento coletivo, ele
abriu mão de sua individualidade e do diálogo com sua consciência.
Como ressaltou Contardo Calligaris,
psicanalista italiano radicado no Brasil, há algo na dinâmica de nossa
subjetividade que faz com que parar de pensar seja uma tentação constante, como
se qualquer desculpa (ideológica, por exemplo) fosse boa para fugir da solidão,
que é a condição do diálogo moral de cada um com sua consciência. Calligaris
afirma que “o coletivo (a nação, o
partido, o sindicato, a torcida, a gangue, o grupo adolescente de amigos, a
própria família) não oferece apenas ideologias e desculpas: ele fornece uma
função para cada um de seus membros. Com isso, não preciso pensar para decidir minha
vida – preciso apenas preencher minha função. É bom o que é funcional ao grupo
– ruim, o que não é”.
A história do século 20 ensinou que não há nada
mais opressor do que tornar a humanidade em um projeto, que sempre será imposto
de cima para baixo. A necessidade de criar o novo homem e de promover o bem
comum está nas raízes de todos os totalitarismos do século passado. Criar nova
sociedade por meio de um projeto político sempre exigirá que se esvaziem dos
indivíduos todas as suas verdades e necessidades egoístas em nome da coletividade, que será representada por um
partido ou por um condutor das massas – em certos casos, por ambos.
É apenas o foro íntimo que coloca os freios à
banalidade do mal. Qualquer ofuscamento do indivíduo representa a morte da
moral e da consciência.
*o texto acima foi escrito por Diogo Coelho e pode
ser lido na íntegra
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